... Apanhar com aquele fio foi uma lição única, é algo que fica
guardado na mente para sempre, sempre que penso, ainda doem minhas
pernas. Ser criança é realmente isto, fazer coisas que jamais
faríamos se fossemos adultos. Este lugar ainda reina em minha
cabeça, parece que não se passaram tanto tempo assim, tudo é tão
claro para mim, sei que tem lembranças ruins, como brincar na rua em
dia de chuva e ficar pegando “peixinho barrigudinho” na vala,
isso não é coisa boa para ser lembrada, não tenho como fugir de
todos estes meus pensamentos, de todas estas passagens pobres e
medíocres, não posso conter as lágrimas que caem em meu rosto
quando penso em tudo isto, não poderia apagar o que já passou, não
poderia voltar lá e refazer uma nova história, não posso fingir
que estas coisas não aconteceram comigo, somente hoje, posso perdoar
o que fizeram comigo, roubaram minha infância ou teve de ser deste
jeito mesmo.
Tudo está escrito de uma forma que não podemos mudar,
será? Acho que é melhor mesmo não tentarmos mudar certas coisas...
Este mundinho que está em minha memória, mesmo não tendo uma bela
praia, um coqueiro... Será sempre meu paraíso. Mesmo se o tempo
passar rápido demais, em minha mente será tudo passado em câmera
lenta, com algumas pausas nos momentos em que sorri, nos instantes
que tive orgulho de ser criança. Eu guardava ainda uma bola de gude,
aquela amarela e azul que me dava sorte e um sapinho de louça que
ganhei de um menino numa festa junina perto de casa. Guardar objetos
faz parte da vida de uma criança, leva tempo para desapegar. Ou
roubam da gente e jogam fora, sem dó nem piedade, feito chupeta.
Eu
gostava de chupeta. Este mundinho parece ser fora deste planeta, me
pego imaginando que passei por lá um tempo atrás para conhecer e
sinto saudades, não parece que foi tudo verdade e por que tiraram de
mim? O que foi que eu fiz? Por que me tiraram de lá? Pensando bem,
se eu continuasse num lugar tão pequeno assim, não iria crescer,
não iria conhecer pessoas diferentes, lugares novos, coisas boas.
Ter ideais. Não poderia sonhar em ir à Paris e não conheceria as
pessoas que mudaram a minha vida. Não poderia contar sobre a
história da Kyka.
Não teria amores bons. Realmente a história não
passaria de um simples diário jogado no fundo da gaveta. E queimado
depois na fogueira em noite de são João. A poeira na rua ainda
existe. As velhas cercas e os muros surrados do tempo. Pessoas que
ainda moram lá envelheceram. Crianças cresceram e casaram, uns já
são avós. Casas foram pintadas, modificaram placas e cortaram
árvores. O meu mundo já não é um mundo tão bom.
E meu diário
continua preenchidos de lembranças, e recordar vez ou outra me faz
perceber que Kyka ainda é uma criança que chora dentro de mim...
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