Tenho sede, uma absurda vontade de goles grandes de palavras "malditas" (...)

Por Ronaldp Monte ... Naufrágio

Helena põe os pés no leito da rua sabendo o que está deixando para trás. A casa onde nasceu, o porto de onde nunca saiu, engelha-se às suas costas, projeto de ruínas. A rua é o mar por onde navega a nau do seu corpo. Todas as cartas de navegação sobre a mesa, todos os mares abertos e nenhuma rota traçada.
Em plena travessia, o que se pensou nave forte, embarcação segura, dá-se conta de sua fragilidade. Não fora feita para tanto mar. São muitas e fortes as ondas que se erguem no ermo da noite. Estaria melhor singrando em frota, em aventuras de certas descobertas. Mas é uma nau solitária que corta o mar escuro que se abre para canto nenhum.
Desde as águas escuras que a expulsaram do ventre da mãe, pelas águas mansas e calorosas do interior da casa que lhe levou a mãe, até as águas caudalosas do amor que revolveu seu leito, Helena pilotou com maestria o leme do seu barco. Agora o leme foge-lhe das mãos.
A frágil nave deriva. Não sabe de portos, não lembra de cais. A última onda levou-lhe o sextante. O último aderno partiu-lhe o astrolábio. O último vento espalhou suas cartas. Assim é o reino das grandes viagens. Sem normas, sem rotas, sem planos. Só quem sobrevive à tormenta conhece o que existe no outro lado do mar.
Esta nau à deriva na noite, carente de terra firme, a mulher à deriva na rua, ansiosa por um ponto de chegada, aportam finalmente na calçada. Nau e náufraga já não vagam. A nave encalha numa praia sem cais, onde a quilha arranha-se nas rochas. A mulher fixa um ponto de partida para longe destas franjas.


Ilustração recolhida em fotos.sapo.pt/pereiralopes

 

www.blog-do-rona.blogspot.com

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...